Por Maurício Zockun e Marco Aurélio de Carvalho
A segurança jurídica é um dos pilares dos estados modernos e, por meio dela, pretende-se conferir às pessoas o prévio conhecimento das consequências jurídicas que advirão da prática de um ato ou da ocorrência de um fato. Essa ideia foi paulatinamente ganhando corpo em nosso sistema constitucional, ainda que esta caminhada seja acompanhada de sobressaltos.
Tome-se como exemplo a Lei 9.868/1999, que, ao também disciplinar o processo e o julgamento das ações diretas de inconstitucionalidade, previu a possibilidade de o Supremo Tribunal Federal restringir os efeitos da declaração de inconstitucionalidade, inclusive temporalmente. A mesma trilha seguiu a Emenda Constitucional 45/2004, denominada Reforma do Judiciário, ao prever a possibilidade de edição das súmulas vinculantes. Essa ideia também permeia o Código de Processo Civil, como o ministro Luiz Fux consignou neste prestigiado espaço. E mais recentemente, a Lei 13.655/2018 fez incluir diversas passagens na Lei de Introdução às Normas do Direito Brasileiro com o declarado propósito de conferir maior segurança jurídica na regulamentação, interpretação e aplicação da legislação de Direito Público, como também registrou nesta ConJur o professor e ex-presidente do Instituto Brasileiro de Direito Administrativo Fabrício Motta. Coroa este propósito a recém aprovada Lei da Liberdade Econômica, segundo a qual “…o ato de liberação (da atividade econômica) estará vinculado aos mesmos critérios de interpretação adotados em decisões administrativas análogas anteriores, observado o disposto em regulamento”, pois não se pode admitir que o poder público se comporte de modo volúvel, à moda do que registrou Giuseppe Verdi na Ópera Rigoletto.
Para além de preocupações teóricas ou de suas repercussões jurídicas, é induvidoso que a segurança jurídica (ou a falta dela) se qualifica como um fator determinante para mensuração dos custos dos negócios jurídicos, tornando-os viáveis ou não; encarecendo-os ou não.
Desde a chegada dos portugueses nestas terras, adotou-se um sistema de certificação de atos e fatos, capazes de garantir a almejada segurança jurídica. Esta atribuição foi afiançada ao Estado, que confere fé-pública aos atos que certifica, e cuja presunção só se afasta por meio de decisão judicial. Esta presunção se funda na ideia de que o Estado não toma partido nas relações travadas pelos particulares; cumpre ao poder público figurar como fiador da veracidade das circunstâncias que permeiam a concretização das relações jurídicas ou da própria relação estabelecida, certificando a sua ocorrência.
O desempenho de parte destas atividades continua sob a exclusiva alçada do Estado, caso das juntas comerciais, tendo outras, entretanto, sido delegadas aos particulares, no que popularmente é conhecido como “cartórios”. A iniciativa de transferir o desempenho de atividades estatais aos particulares — efusivamente aplaudida nos dias que correm como uma das notas características dos Estados modernos —, foi inaugurada entre nós, precisamente, com os notários e registradores. Os cartórios foram os precursores da aplaudida desestatização. Nada mais moderno, portanto, do que essa atividade delegada.
Além disto, os cartórios não são uma solução à brasileira; verdadeira jabuticaba, pois. Pelo contrário, trata-se de um modelo altamente difundido e mundialmente exitoso na defesa da segurança jurídica. Tome-se, por exemplo, as atividades desempenhadas nos cartórios de notas. Esse modelo beneficia mais de dois terços da população mundial, sendo adotado em 86 países, tais como China, Japão, Coréia, França, Alemanha, Espanha, Itália, Portugal, além de praticamente toda a América Latina.
Não bastasse isto, a segurança jurídica decorrente das atividades desempenhadas pelos cartórios é potencializada em razão do seu singular método de fiscalização. Afinal, cumpre ao insuspeito Poder Judiciário fiscalizar todos os atos praticados nos cartórios. Logo, os cartórios não apenas desempenham essa função estatal de modo eficiente, razão por que têm sido agraciados com larga aprovação e reconhecimento por usuários e pela população…. seus atos são avalizados pelo Poder Judiciário.
Justamente porque o Estado reconhece nos cartórios um instrumento de difusão da segurança jurídica, inúmeras leis passaram a transferir a eles tarefas anteriormente confiadas ao Poder Judiciário, tais como: usucapião extrajudicial, autorização de viagem, separação e divórcio extrajudicial, reconhecimento de paternidade, mediação e conciliação, além de outras atividades. Até mesmo tarefas desempenhadas por órgãos públicos — exigentes de fé pública — tiveram o seu exercício delegado aos cartórios, em movimento chamado de Ofício da Cidadania, e que recebeu ampla acolhida popular.
Assim, representa um perigoso retrocesso o movimento que, pautado em uma alardeada eficiência e redução de custos, tem procurado atribuir a entidades privadas atribuições desempenhadas pelos cartórios.
É o que se passou, recentemente, com a autorização para que a cédula imobiliária rural seja levada a registro ou a depósito em qualquer entidade autorizada a funcionar pelo Banco Central, e que exerça a atividade de registro ou depósito de ativos financeiros e mobiliários (artigo 16 da Medida Provisória 897). Essas atividades — que até então eram exercidas com fé-pública, sob responsabilidade objetiva do Estado, mas desempenhada com a eficiência própria dos particulares, e sob a intensa fiscalização do Poder Judiciário — passam a ser registradas e depositadas em quaisquer entidades financeiras privadas.
Com isto, pretende-se que estas atividades não mais sejam fiscalizadas pelo Poder Judiciário. Mas não é só. Suprime-se de pessoas desinteressadas no negócio jurídico a prerrogativa de afirmar e atestar a lisura formal destes títulos. Suprime-se do impessoal olhar técnico a prerrogativa de impedir o registro de títulos divorciados das exigências legais. Suprime-se, pois, o que de mais elementar se busca em uma vida em sociedade: a segurança jurídica.
Além de esta proposta não se afinar com o regime constitucional da fiscalização destas atividades — porque o artigo 236 da Constituição da República confere ao Poder Judiciário a sua fiscalização, ao passo que a noticiada medida provisória pretendeu transferi-la ao Banco Central —, rompeu-se a segurança jurídica até então reinante nesta seara.
Mas para além do impedimento jurídico, essa medida traz outro resultado perverso e contrário ao propósito supostamente pretendido. Afinal, demonstrou-se que essa medida provisória pretende transferir a realização destas operações para um ambiente de maior fragilidade jurídica. E quão maior a insegurança jurídica em relação a um objeto, mais elevado é o custo da transação.
Assim, a proposta veiculada nessa medida provisória, lamentavelmente, inflaciona e agrava o “custo Brasil”.
Maurício Zockun é advogado sócio da Zockun Advogados, professor de Direito Administrativo nos cursos de graduação, especialização, mestrado e doutorado da PUC-SP, livre-docente e doutor em Direito Administrativo pela PUC-SP.
Marco Aurélio de Carvalho é advogado especializado em Direito Público, sócio-fundador do Grupo Prerrogativas e da Associação Brasileira de Juristas pela Democracia, secretário da Comissão de Direito Notarial e de Registro da OAB-SP e consultor da Comissão de Proteção de Dados da OAB-RJ e membro do Sindicato dos Advogados de São Paulo.
Fonte: Revista Consultor Jurídico, 13 de fevereiro de 2020, 6h02